terça-feira, 7 de julho de 2015

Não há só um camisola amarela

Nunca pratiquei nenhum desporto. A culpa está na minha péssima coordenação motora e no facto de eu ser a pessoa mais trapalhona de que deve haver registo. No entanto tenho muita pena de não praticar desporto, ou de não ter sido inscrita num desporto qualquer quando era pequena. Desde que me lembro de ver desporto - se ver desporto contar como desporto então sou uma atleta - que fico fascinada com a capacidade psicológica dos desportistas. É incrível a forma como transformam a dor em motivação, o espírito de sacrifício, a vontade de se superar, a capacidade de se levantar quando tudo parece estar perdido. Acho mesmo que os desportistas são as pessoas mais fantásticas do mundo.
Como já disse, eu sou uma ávida espectadora de desporto e não interessa qual. Se puder assistir ao vivo eu estou lá porque a atmosfera é uma coisa que a televisão ainda não tem capacidade de transmitir (por muita tecnologia que haja, há coisas intransmissíveis e perde-se tanto quando só se vê na televisão - até podemos ver a repetição dos lances 20 vezes que há coisas que se perdem). Já fui ver jogos da selecção nacional da Liga Mundial de Voleibol ao Multiusos de Guimarães, sempre que posso vou ao Pavilhão do Vitória ver o basquetebol e já fui ver jogos de Basquetebol a Fafe nas últimas duas Finais 8 em que o Vitória participou (e ganhou uma delas num jogo espectacular contra o Benfica) e vou ver futebol sempre que posso. Na televisão acompanho aquilo que posso, desde futebol a ciclismo. E é exactamente de ciclismo que quero falar aqui hoje.
Os menos distraídos já devem saber que o Tour de France já se iniciou este ano. O Tour é, como devem saber, uma competição anual de ciclismo de estrada que se realiza geralmente em Julho na França (com alguns desvios pelos países vizinhos). É talvez a competição mais importante para os ciclistas e é extremamente dura e parece intangível para o mais comum dos mortais. O percurso altera-se todos os anos mas o formato da prova é sempre o mesmo: incluí provas de contrarrelógio, a passagem nos Pirenéus e nos Alpes e termina nos Champs-Élysées em Paris. A prova divide-se em 21 etapas diárias ao longo de 23 dias e os ciclistas percorrem um total de cerca de 3200km. Já perderam o fôlego? Eu também. Como eu disse, não é acessível ao mais comum dos mortais. Em bom português: é só para quem os tem no sítio.
Ontem foi dia da 3ª etapa. Se estão a par das notícias, aperceberam-se da aparatosa queda quando faltavam cerca de 60 km para o final da etapa. A queda foi tão grave que a corrida teve mesmo de ser neutralizada (foi a primeira vez que vi isto acontecer). A queda envolveu um largo número de ciclistas levando alguns a abandonarem a prova de imediato. Entre os ciclistas que foram ao chão estava o "nosso" Rui Costa. Estava a acompanhar a etapa em directo quando me apercebi da queda e fiquei logo triste porque percebi as consequências que ia ter no desempenho de imensos atletas. Imaginam a tristeza de um ciclista quando cai e percebe que se não se conseguir levantar e aguentar as dores está tudo acabado para ele? Não é só o ciclista que cai, não é só a bicicleta que se arranha no chão, é o sonho que acaba. Cerca de 25 minutos depois o director da prova dava ordens para que esta se reiniciasse. Alguns ciclistas conseguiram continuar, com o equipamento rasgado, os joelhos e os cotovelos vermelhos do sangue e da dor que por certo sentiam, as caras de desalento e tristeza, as expressões de quem tem de transformar a dor na sua maior motivação. Talvez eu seja demasiado sensível, mas parece que a dor deles é também um bocadinho minha. Outros foram forçados a abandonar a prova de imediato porque não tinham condições para continuar.
Rui Costa confessou mais tarde que foi em sofrimento até à meta. Como ele acredito que tenham sido muitos. Não é só o sofrimento físico - que só por si já é suficiente - mas é ainda o sofrimento psicológico. Confessou também, no seu blog que amanhã a etapa vai ser muito dura porque é em paralelo e para juntar a isso tem as mazelas na anca, no joelho e nas costas. Cancellara, que carregava a camisola amarela, também esteve envolvido no acidente. Tal como Rui Costa decidiu continuar até à meta, visivelmente mais queixoso e combalido. Eram notórias as dores que sentia. Depois dos exames médicos foi obrigado a abandonar a prova porque tinha duas costelas partidas. Vocês já devem ter percebido mas deixem-me só dizê-lo claramente: Fabian Cancellara fez cerca de 50 km com duas costelas partidas! Não foi o único a continuar com uma lesão. Laurens ten Dam decidiu terminar a etapa depois de a sua equipa ter "consertado" o seu ombro deslocado ainda no chão do asfalto.
É no final de etapas como esta que acho os títulos uma enorme injustiça. Porque é que só um é que tem direito à tão almejada camisola amarela quando todos são campeões? Todos aqueles ciclistas que caíram e se magoaram mas arranjaram forças sabe-se lá onde para chegar à meta mereciam a sua própria camisola amarela, não mereciam?
É em dias destes (e nos outros todos) que os desportistas são pessoas que têm todo o meu respeito e admiração. Porque continuam, mesmo que tenham muitas barreiras à frente. E é assim que nem sempre são só os que ganham que ficam para a história.

No final, Christopher Froome ficou com a camisola amarela (o ano passado Froome foi obrigado a abandonar a corrida num dia chuvoso depois de duas quedas). O vencedor da etapa foi o espanhol Joaquim Rodríguez.
Cancellara
Foto: www.mirror.co.uk
Foto: www.mirror.co.uk
Foto: www.mirror.co.uk
Foto: www.mirror.co.uk
Foto: www.mirror.co.uk
Laurens ten Dam depois de deslocar o ombro
Foto: www.mirror.co.uk
Um membro da equipa a pôr-lhe o ombro "no sítio" para que continuasse a corrida
Foto: www.mirror.co.uk
P.S.: Estão 4 portugueses em prova: Rui Costa (dorsal 151) que se encontra na 30ª posição na classificação geral, a 3.10 de Froome (ficou em 38º lugar na 3ª etapa), Tiago Machado (dorsal 98) que é 59º na geral (39º na etapa 3), Nelson Oliveira (dorsal 155) que se encontra na 79ª posição da geral (107º na etapa 3) e o vimaranense José Mendes (dorsal 197) que é o 163º da geral (162º na etapa 3). Em competição está também o lusodescendente Armindo Fonseca (dorsal 206) que se encontra na posição 78º da classificação geral (na etapa 3 ficou no 45º lugar).

P.S.2.: A decisão do director da prova neutralizar a corrida foi muito polémica e contestada por alguns corredores que não estiveram envolvidos na queda. A contestação surgiu aparentemente porque na 2ª etapa também houve uma queda mas a corrida continuou. Eu não acompanhei a etapa 2, mas percebi que depois da caótica queda de ontem a corrida tinha obrigatoriamente de ser neutralizada por uma razão muito simples. Os veículos de emergência e os médicos da prova estavam todos no local do acidente a prestar ajuda aos ciclistas que estavam magoados, logo se houvesse algum acidente pouco depois deste não estavam disponíveis os meios de emergência necessários, o que podia ter efeitos catastróficos e até fatais. Por isso sim, a corrida tinha de ser neutralizada porque antes de tudo está a saúde dos atletas e se a assistência não pode ser garantida só havia mesmo este caminho. 

Sem comentários :

Enviar um comentário