Enquanto o leão não aprender a escrever,
o caçador vai ser sempre glorificado.
- Provérbio Africano
O que mais gosto no provérbio com que dou início a este
post é que não é, de todo, sobre leões e caçadores. É sobre opressores e oprimidos. A sua origem remonta aos tempos de colonização em África. Se as antigas colónias não escrevessem sobre a colonização e as suas implicações, inclusive nas suas vidas diárias até ao dia de hoje, apenas conhecíamos a história dos colonizadores - e esses, provavelmente, diriam que estavam no seu direito de fazer o que fizeram e que o fizeram por bem. Se os escravos não tivessem escrito sobre as crueldade e desumanidade da escravatura, hoje só conheceríamos o ponto de vista dos esclavagistas - e estes iam defender apenas a sua posição, iam arranjar argumentos disparatados sobre como a cor inferioriza uns e superioriza outros, iam tentar justificar a desumanização dos seus actos. Imaginem que toda a literatura sobre o Holocausto era apenas escrita pelos nazis. Só teríamos uma única perspectiva de um dos períodos mais monstruosos da História. Sem a visão dos oprimidos, nunca poderíamos compreender totalmente um conflito e a tendência de perpetuar os mesmos ciclos de opressão era muito mais elevada.
Aparentemente este provérbio, assim como o parágrafo anterior, não tem relação nenhuma com o Vitória. Podem achar que nada do que escrevi até agora faz sentido, mas se fizermos o exercício de o aplicarmos a um contexto muito menos violento, muito mais diplomático, menos literal e com menos importância na história mundial e na sociologia acaba por fazer sentido. Opressores e oprimidos. Acho que já perceberam onde quero chegar. O futebol português é feito, de certa forma, de opressores e oprimidos. Claro que a uma escala muito, muito menor relativamente aos eventos da História a que faço referência inicialmente. Não tem, sequer, comparação e não estou a tentar comparar o futebol português ao Holocausto! A ideia fundamental é que, como em todas as histórias de opressores e oprimidos, há um sistema baseado na diferença, no poder e no dinheiro. O futebol português é, cada vez mais, assim. Olha-se para a tabela classificativa como se fossem
3 + os outros. Infelizmente esta visão redutora da liga é partilhada pelos órgãos oficiais que regulam o futebol em Portugal, pela comunicação social e até mesmo pelos presidentes dos "outros" que continuam a prestar subserviência perante os do costume.
O futebol português está sujo, corrompido, nojento e completamente manipulado para facilitar a vida a três, e nem preciso de fazer referência a nomes, e para prejudicar a vida dos restantes. A arbitragem sectária, a disciplina que consagra uns como filhos e outros como enteados, os sorteios estranhos, as regras sem cabimento que não conhecem igualdade, as capas de jornais sempre dedicadas aos mesmos, o tempo de antena oferecido a uns e roubado a outros. Tudo isso, e tudo o resto a que não faço referência, é vergonhoso. É uma autêntica burla a todos nós, ingénuos espectadores deste circo, e uma descarada falta à verdade desportiva e aos princípios de igualdade e ética. Uma burla grave a todos nós que pagamos quotas, cadeira, bilhetes para jogos em casa e fora, gastámos dinheiro em viagens e muitos de nós poupam para o fazer, faltamos a compromissos porque "hoje não dá, joga o Vitória", gerimos o nosso tempo em função dos jogos, passámos frio e apanhámos chuva ou então passamos por um calor abrasador e um sol que não dá tréguas, conforme estiver o tempo - isso é só um pormenor quando comparado com a dimensão do nosso amor. Isto não é uma queixa, de forma absolutamente nenhuma e acho que agora posso escrever em plural, calculo que sentimos todos o mesmo. Se assim não é, peço desculpa antecipadamente. Fazemos o que fazemos com gosto e falamos disso com os olhos a brilhar de orgulho, a paixão e o amor a fervilhar e a moldar a voz. Sacámos do cartão de associado e contamos mil histórias em cinco minutos, e nem assim dizemos tudo o que queríamos dizer. Às vezes a voz mal se ouve, seja pela emoção ou porque estamos roucos por causa do último jogo em que gritamos até não dar mais - e dá sempre mais - ou porque ficámos doentes (ou uma mistura de tudo isso). Acontece e faz parte, ninguém se queixa. Até nos vangloriamos disso. Os outros que não ficam assim não têm as nossas histórias nem fazem história porque não saem do sofá e, todos sabemos, não entendem o amor verdadeiro a um símbolo porque passam a vida no sofá a escolher o clube por quem vão torcer na próxima época porque naturalmente isso depende do que dizem os jornais, as redes sociais, os outros e se o clube ganha ou não títulos.
Quem é o culpado desta burla? A culpa do crime tem de recair no criminoso, naturalmente. A culpa é de quem toma as decisões, quem manda e pode. Esses sabemos quem são e pouco ou nada podemos fazer, enquanto espectadores, para mudar isso. No entanto não são os únicos culpados. Quem é cúmplice também é criminoso, quem acena a cabeça em sinal de concordância também falta à verdade, quem não age contra também está contaminado, quem sabe e não abre a boca para se revoltar não está a agir em conformidade. Falar contra o e quem está mal pode trazer dissabores, críticas menos favoráveis e consequências amargas. No entanto a revolta tem o poder de mudar as coisas, de alterar o futuro e de fazer a diferença. A conformidade e o silêncio são, desde sempre, os maiores inimigos do progresso. A História ensina-nos isso. Se bem que o silêncio possa ser uma decisão sensata de vez em quando nunca é sensato fazê-lo quando isso nos prejudica, quando é um sinal de obediência, cabeça baixa sobre os narizes empinados. Quando o silêncio é perante aqueles que nos tiram os nossos direitos e perante quem já mostrou não ter princípios, então o silêncio nada mais é do que um sinal de cobardia e de falta de liderança. Nesses casos, o silêncio legitima o criminoso, dá-lhe o à-vontade necessário para continuar a agir da mesma forma, legitima o fosso de desigualdades, legitima o crime, a burla. De vez em quando, e sempre que necessário, é preciso dar um murro na mesa. Infelizmente há muito tempo que, no Vitória, ninguém dá um murro na mesa. Por isso o Vitória continua à procura das migalhas, à espera que elas caiam da mesa dos adultos onde ainda não se pode sentar porque os outros não deixam. Precisamos de reclamar o nosso lugar de uma vez por todas. O silêncio e o comodismo à falta de verdade desportiva já nos roubou muito, muitos pontos, o respeito de alguns meios de comunicação e acredito mesmo que já nos possa ter custado o campeonato.
Embora o Vitória seja o único clube com o qual me importo, reconheço que neste assunto nenhum dos "outros", inclusive nós, pode ser uma ilha desligada das outras ilhas. Devemos ser, antes, um arquipélago na luta pela verdade desportiva, pelo tratamento igual e pelos nossos direitos. No caso do Vitória, como já disse o único que realmente me importa, não vejo iniciativa para mudar o panorama, para progredir. Apenas silêncio, por vezes interrompido por um comunicado vago e pouco específico e que, no final, costuma servir para tapar o sol com a peneira. Um clube que tem como figura máxima um líder e um conquistador, D. Afonso Henriques, tem de ser o primeiro a iniciar uma revolução, uma mudança e a liderá-la com convicção e certeza, pronto a enfrentar o que encontrar no caminho. Com um povo que não se cala nas bancadas, jogo após jogo, época após época, em jogos ou em treinos, dentro do estádio ou fora, no berço ou noutro estádio, e quem nos representa tem de perceber que o silêncio não é aceitável nem deve ser sequer uma opção. A subserviência aos outros é uma admissão de que o tratamento diferente tem uma base legítima e sólida quando, na verdade, não tem, é uma admissão de que uns são menos e os "escolhidos" são mais apenas porque têm mais dinheiro e poder. E porque é que têm mais dinheiro e poder? Por causa deste ciclo vicioso, de tirar aos que pouco têm para dar aos que têm a mais. No fundo, quase uma reflexão do país em que vivemos.
O maior erro que esta direcção cometeu até agora foi, na minha opinião (e esta vale o que vale), o silêncio em diversas situações e que continua a coagir com este crime sem precedentes protagonizado pela imprensa, liga, federação. Os direitos devem ser para todos de igual forma. Quem representa um clube da dimensão do Vitória não pode calar-se na iminência da injustiça com medo de represálias. Se fosse essa a nossa história, hoje seríamos espanhóis. Não somos! A única opção de saída deste ciclo vicioso é o de contar a história, falar, dialogar, protestar, revolucionar, mudar o curso. Quando os sistemas não funcionam, é necessário alguém com coragem para tomar medidas disruptoras e para alterar o panorama, parar este ciclo vicioso que não faz sentido e cansa todos os que, como eu, gostam e contribuem para o crescimento do meu clube, o clube da cidade que me viu crescer e que constituí a base do meu crescimento, que apoia o clube da terra sem prestar atenção aos parolismos e estarolismos que poluem o futebol em Portugal. Cansa-me ver este ciclo continuar sem que os prejudicados se revoltem e reclamem os seus direitos. Precisamos de coragem. O Vitória e o futebol português em geral precisam de coragem. Coragem para mudar o que está estático à tantos anos e que tão mal tem feito aos estádios e aos clubes que não são os supostos "grandes". O leão sabe escrever mas infelizmente ainda não aprendeu a contar uma história diferente da dos caçadores.